Tiwanaku (2ª parte)

Texto de Dalton Delfini Maziero
(extraído de seu diário de expedição, 1997)

Na 2ª parte de seu diário de expedição, o autor continua sua apresentação sobre o ambiente de Tiwanaku, com observações feitas in loco. As fascinantes ruínas vizinhas de Pumapunku, a misteriosa Porta do Sol e a descrição de um dos mais importantes centros religiosos do mundo pré-colombiano.


...As ruínas de Tiwanaku estão, segura-mente, entre as mais interessantes ruínas das Américas. O visitante compra um ingresso que dá direito a visitá-la. Incluídos, estão também o museu e as ruínas de Pumapunku. Milhares de turistas visitam Tiwanaku, todos os anos.
Logo na entrada, a poucos metros, deparei- me com duas curiosas estátuas, entalhadas em um único bloco cada. Lado a lado, como guardiões, pareciam proteger as ruínas. Deste ponto, a visão que se tem já é impressionante. Muralhas enormes e

um grande morro artificial projetam-se, não muito distante, convidando-nos a caminhar. Vi turistas passarem direto da entrada principal até os edifícios mais importantes. Evite o óbvio. Tiwanaku deve ser conhecida com “todo o tempo do mundo”. Antes de escalar a pirâmide, ou fotografar a Porta do Sol, dê uma boa caminhada nas proximidades da cerca, ou mesmo entre o mato baixo que envolve o complexo. Certamente, terá surpresas! Pedras entalhadas, pedaços de estátuas, restos de escavações arqueológicas, portais que se projetam para
fora da terra. Enfim, parte das ruínas que pouca gente conhece e que merece uma visita.
Olhando, com atenção, para o solo, também podemos encontrar centenas de pedaços de cerâmica. Examine-os à vontade, mas, evite levá-los como lembrança. Tiwanaku já foi saqueada o suficiente! Não se esqueça que guardas ficam constantemente observando o movimento do visitante. Portanto, se presenciar alguém riscando ou danificando paredes e estátuas, não exite em denunciá-los. O patrimônio arqueológico agradece.
Observar as estátuas de Tiwanaku é mais do que um prazer. Detalhes maravilhosos saltam aos olhos de visitantes pacientes. Objetos enigmáticos, expressões rígidas, padrões incompreensíveis! São tantos os detalhes... E pensar que arrebentaram estátuas como estas a golpes de marreta! Que crime! Cieza de León nos fala, emocionado, a respeito das ainda existentes em sua época. Obras que se perderam para sempre. O cronista nos conta:
"Mais adiante desta montanha estão os ídolos de pedra de porte e figura humana, primorosamente feitos e formados as feições; tanto, que parece que se fizeram por mãos de grandes artífices e mestres; são tão grandes que parecem pequenos gigantes, e visse que tem forma de vestimenta comprida, diferentes das que vemos os naturais desta província; nas cabeças parecem ter ornamentos."

A disposição dos edifícios em Tiwanaku é bastante curiosa. Antigamente, grandes "avenidas" separavam os principais monu-mentos, numa distribuição harmônica que lembra muito outra ruína americana, a de Teotihuacan, no México. Espaços abertos entre edifícios, como grandes praças e pirâmides escalonadas, são caracterís-ticas desta arquitetura antiga.
Curioso notar que Teotihuacan foi "encontrada" pelos astecas, na mesma situação que Tiwanaku pelos incas, ou seja, no mais completo abandono!

Enormes centros cerimoniais completamente desertos, ocultando para a eternidade seus segredos. Existiria algum paralelismo entre elas? As possibilidades são remotas, embora,
as ligações entre culturas da América parecem ter sido mais estreitas do que se supõe. Aos poucos, arqueólogos encontram indícios, seja em cerâmica, ou em produtos de determinados pisos ecológicos, que revelam um relacionamento, ao menos, comercial entre povos distan-tes. Contudo, esta teoria ainda está sendo analisada. Curioso notar que, tanto astecas como incas, recorreram às lendas sobre um antigo povo de gigantes para explicar as citadas cons-truções. Ciclópicas e misteriosas, estas ruínas, certamente, causaram grande impacto e influência naqueles povos.
Para observar a disposição geral dos edifícios, nada melhor do que subir ao topo da pirâmide de Akapana. De lá, também se pode ver todo o vale no qual Tiwanaku está localizada. Muitos podem se decepcionar ao imaginar alguma semelhança com as pirâmides egípcias.
Na verdade, elas têm pouco em comum. A primeira vista, mais parece um morro natural do que uma construção humana, tamanha é a quantidade de terra que a cobre. Este tipo de monu-mento é conhecido como "pirâmide escalonada", pois, é erguida sobre plataformas, formando uma gigantesca escadaria. Sua altura total está por volta dos 18 metros. A pirâmide de Akapana é formada por sete plataformas.
Todos os cronistas que passaram por Tiwanaku a registraram. Bernabé Cobo descreve a pirâmide da seguinte forma:
"Este é um terrapleno de quatro ou cinco estados de altura que parece uma montanha, fundado sobre grandes alicerces de pedra; sua forma é quadrada e tem a intervalos como travessas ou cubos de fortaleza...".
Cobo, certamente, visitou as ruínas com algumas das plataformas soterradas. Quanto ao seu formato, não era exatamente quadrada. Suas verdadeiras dimensões são de 194,40 por 182,40 metros de base. Garcilaso de la Vega a descreve assim:
"Um morro ou montanha feita a mão, tão alta para ser feita pelos homens que causa admiração; e porque o morro ou terra amontoada não deslizasse e nivelasse o morro, o construíra sobre grandes alicerces de pedra, e não se sabe porque foi feito aquele edifício..."
Em meados do século XVI, o monumento era chamado, por alguns, de Huarmirara, e não, Akapana. Este termo moderno significa "montanha artificial".

Escavações arqueológicas revelaram alguns dos
blocos de pedra que ocupavam posições estratégicas na construção. Eram reforçados com grampos feitos de cobre ou bronze. Após a união das pedras, os obreiros entalhavam os grampos na própria rocha, em relevo, no formato de “T” ou “I”, para que depois fossem preen-chidos com metal derretido. Akapana, a exemplo de outras construções em Tiwanaku, jamais foi finalizada. Este fato foi constatado por pesquisas modernas que também revelaram uma esmerada técnica de cons-trução. Em uma delas, o terreno foi deixado exposto
para que todos pudessem apreciar parte das plataformas que compõem sua formação.
O que se vê, são enormes blocos perfeitamente ajustados, canais de água nivelados e passagens
que parecem dar acesso ao interior do edifício!
Quem subir ao cume, observará uma enorme cratera, escavada por antigos caçadores de tesouros. Uma
triste herança do período colonial. No século XVIII, um espanhol, conhecido como Oyaldeburo, foi um dos responsáveis pela depredação. Em busca de um

suposto tesouro no interior da pirâmide, escavou-a jogando seu entulho pela encosta.
Daí o fato de, atualmente, também estar coberta com terra. No local deste buraco, existia
uma espécie de plataforma subterrânea ladeada de pedras, ou templete semi-subterrâneo.
Sua utilização é discutível, mas, escutei de um dos guias locais, uma interessante teoria.
O jovem dizia que aquilo foi, na antiguidade, uma espécie de "piscina", na qual os sacerdotes estudavam, durante a noite, o reflexo das estrelas na água! A pirâmide funcionaria, desta forma, como um local de estudos astronômicos. Próximo a este buraco, existe uma fileira de pedras alinhadas. Uma delas é conhecida por deixar as bússolas dos turistas completamente descontroladas!
A esta altura, já estava maravilhado com todo aquele cenário! Quantas perguntas passavam pela minha cabeça, ao mesmo tempo. Olhei outros edifícios lá embaixo e, finalmente, desci em direção ao Templo Semi-Subterrâneo.
Este monumento é um dos mais famosos da arqueologia americana. O acesso ao seu espaço cerimonial é feito por uma enorme escadaria. Paredes de 1,98 metros de altura me contornavam, exibindo dezenas de cabeças humanas esculpidas nos mais variados estilos! Ao centro, alguns monólitos com figuras humanas e abstratas revelavam que o lugar fora de extrema importância religiosa.
As dimensões deste complexo são irregulares. Mas, não porque os arquitetos eram inexperientes! Tudo ali foi calculado de forma a drenar as águas da chuva de seu interior!
Um pequeno e preciso desnível de 3 centímetros em 28,46 metros em uma das laterais,
foi o suficiente para escoar as águas que eram encaminhadas a um terreno lateral.
Seu declive em relação ao terreno está a exatos 2 por cento.
Em 1932, o arqueólogo Wendell Bennett desenterrou, de seu interior, um enorme monólito batizado com seu nome. Possui 1,20 de largura por 7,30 de altura, pesando, aproximadamente, 17 toneladas! É conhecido também como Monólito Pachamama (nome dado por Posnansky) e está entalhado em um único bloco de arenito rosado.
Na verdade, este monólito havia sido descoberto em 1903 por uma missão francesa que
não chegou, sequer, a desenterrá-lo. Não se sabe, ao certo, se aquele era seu sítio original. Hoje, esta magnífica obra está exposta em uma praça em La Paz, em frente ao moderno estádio de futebol, juntamente com outras peças retiradas de Tiwanaku. Uma espécie de museu a céu aberto.

O monólito foi transportado para a capital por ordem de Posnansky que, desta forma, procurava poupá-lo de maiores depredações. Na época, foi duramente criticado por outros estudiosos. Posnansky conseguiu seu intento e salvou o monólito da barbárie de viajantes que insistiam em deixar seus nomes escritos na peça. O que ele não imaginava é que, no final do século XX, outra ameaça atacaria a obra. Desta vez, a poluição da cidade de La Paz que ameaçava desfigurar e escurecer a imagem! Uma espécie de fungo, causado por ela mesma, aos poucos, está descaracterizando a peça. Atualmente, existem monólitos menores no interior
do Templo Semi-Subterrâneo. O principal deles
é conhecido como Monólito Barbado ou Homem
de Kontiki.
Outras curiosas características deste templo são as inúmeras cabeças que ornamentam suas paredes internas. Representam homens e, certamente, foram esculpidas por diferentes artistas. Pelo menos, é o que se pensa mediante os variados estilos. Contudo, seu verdadeiro significado é um mistério. Inicialmente, os

arqueólogos acreditaram tratar-se da representação das diversas culturas regionais que se uniram aos tiwanacotas. Depois, acharam que poderia ser uma homenagem aos trabalhadores que auxiliaram na construção da cidade, representados aqui, por suas etnias.
Após observações feitas por Ponce Sanginés, as teorias começaram a circular em torno da representação de um calendário solar. Ponce contou 325 cabeças, notificando que muitas haviam desaparecido, com o passar do tempo. Atualmente, se verificarmos, existem vários espaços que poderiam ter sido ocupados por peças que não mais estão no local. Seriam
365 cabeças no original? Representariam os dias de um ano? Existe uma probabilidade, mas, é difícil afirmar seu real significado. Interessante notar que nenhum cronista faz qualquer referência a este templo. Disso se conclui que estava, na época, completamente soterrado.
Saí do Templo Semi-subterrâneo com o “queixo caído”. Somente uma civilização muito avançada seria capaz de tal obra. As rochas eram entalhadas com uma maestria exemplar! Novamente, subi a escadaria de acesso e fiquei de frente para outro enorme edifício de Tiwanaku, o Kalasasaya. Sua entrada, feita através de uma escadaria monumental de sete degraus, foi cercada pelas autoridades, de modo a evitar que os visitantes desgastem, ainda mais, o monumento, caminhando sobre ele. Uma estreita e íngreme escadinha lateral é, atualmente, o acesso ao interior desde templo.
Estava ofegante. Não por falta de ar, mas, pela emoção de estar ali! De um lado, o Monólito Ponce, do outro, a famosa Porta do Sol. Aonde ir primeiro? Segui em direção a entrada principal, o impressionante portal que agora via por outro ângulo. Antigamente, aquele que ingressava no recinto, deparava-se de frente ao Monólito Ponce, uma estátua de 3 metros de altura, coberta por enigmáticos desenhos. Imponente, a figura segura, junto ao corpo, dois objetos de difícil interpretação e ”olha”, com expressão austera, para frente.
O Kalasasaya, onde se encontra o Monólito Ponce é, na verdade, uma plataforma retangular de aproximadamente 126 metros de altura por 117 metros de largura. No século XVI, quando os cronistas e conquistadores aqui chegaram, ainda puderam ver a disposição original de seus muros que, posteriormente, foram derrubados para a construção do moderno povoado de Tiwanaku e da ferrovia. O termo Kalasasaya parece significar algo como "cerco de pedras erguidas", ou "pedra parada", como dizem outros. A exemplo do Templo Semi-Subterrâneo, o Kalasasaya é levemente inclinado, permitindo um perfeito escoamento das águas da chuva.
O visitante observador logo vai reparar que nada foi construído, ao acaso, em Tiwanaku. A cidade foi projetada em seus mínimos detalhes. Todas as construções foram orientadas pelo movimento solar. Assim, o Kalasasaya está direcionado, de forma perfeita, com os quatro pontos cardeais, indicando a entrada do sol e anunciando os solstícios e equinócios.
Para mim, o conceito sobre a capacidade técnica do povo tiwanaku, definitivamente, “subiu ao topo”, após conhecer uma obra que poucas pessoas chegam a ver! Trata-se de uma "simples" rocha com um pequeno orifício em seu interior. A rocha tem quase a altura de um homem, ficando o “dito” orifício próximo a sua boca. Está localizado dentro do Kalasasaya, à esquerda de quem ingressa no complexo pela estreita escada de acesso.

A pedra faz parte de um segundo muro interno.
Ao observarmos, verificamos que o furo esculpido ganha dimensões diferentes em seu interior, atingindo o outro lado com um diâmetro distinto. Para que serve? Qual sua função? Certamente, não se deram ao trabalho, sem alguma razão. Trata-se de um auto falante! Esculpido, há centenas de anos, pelos
antigos tiwanakus, com uma técnica sem precedentes. Para quem fala do interior do Kalasasaya, ele funciona mesmo como um auto falante, ampliando a voz para fora do recinto. Não é difícil de imaginar sacerdotes comunicando à população do lado de fora, os desígnios e previsões que estavam realizando no interior do recinto. Para quem fala pelo outro lado, sua voz chega, sem dificuldades, ao Kalasasaya. Nem é preciso gritar! Muito pelo contrário. Falando em tom baixo, a mensagem atinge o ouvinte, posicionado à distância considerável! Algo simplesmente impressionante!
Lembrei-me dos construtores da ferrovia. Como alguém, em sã consciência, poderia ter estourado, obras como estas, com dinamite e marretas?

Não podia acreditar na falta de sensibilidade que alguns seres humanos possuem.
Deu vontade de chorar por tudo aquilo que jamais veria.
Finalmente, a Porta do Sol!
Poucos monumentos arqueológicos no mundo geraram tantas interrogações. Não há quem
a olhe de forma indiferente. Todos ficam hipnotizados pelo seu enigmático friso entalhado.
As teorias sobre o que representaria são inúmeras e suficientes para escrever um livro... a começar pelo nome "Porta do Sol", que não encontra nenhum motivo aparente de ser.
O termo parece ter surgido no século passado, identificando a obra até hoje. Quase tudo nela está envolto em incertezas.
No passado, os cronistas se calam sobre ela. Provavelmente, estaria tombada, o que garantiu sua preservação até nós. Seu sítio original também é uma incógnita. A discussão segue sem muitas chances de conclusão. Alguns defendem que estaria posicionada no topo do Akapana, enquanto para outros, estaria mesmo dentro do Kalasasaya. Segundo tradições, foi descoberta e levantada, em 1825, por Antonio José de Sucre. Posteriormente, em 1910, o governo boliviano a colocou no local onde se encontra até hoje. Sua rachadura foi causada, possivelmente, por um transporte mal sucedido no século passado. Suas dimensões são de 2,73 metros de altura por 3,84 metros de largura e possui 50 centímetros de profundidade.
O monólito está entalhado num único bloco de andesita, uma pedra duríssima!
As teorias suscitadas geram polêmicas. Em 1937, Fritz Buck, um colecionador de peças arqueológicas de La Paz, baseado em exemplares de sua própria coleção, afirmava que o friso da Porta do Sol nada mais era do que uma representação do calendário maia! Analisando as imagens de seres correndo, como nas cerâmicas mochica, Armando Vivante e Belisario D. Rodriguez afirmaram que o friso representaria alguma espécie de culto ou dança.
Dois outros autores, H.S. Bellamy e P.Allan, acreditando terem descoberto o significado do friso, afirmaram que ele espelharia uma rotação diferente da que conhecemos hoje sobre o sol e a lua. Uma rotação que remontaria há milhares de anos, antes de Cristo!
Invertendo a ocupação original das civilizações, a escritora Josefina Ramos de Cox defendia que era um calendário baseado no incaico, como se estes tivessem existido anteriormente aos tiwanakus! Outros, como, Leo Pucher de Koll, chegaram a conclusão de que o friso representava a batalha entre tiwanakus e uma praga de larvas que havia dizimado suas plantações de batatas!!! A respeito desta última teoria (que lhe valeu anos de ridicularização no meio científico), o arqueólogo Arthur Posnansky, num cinismo típico de época, referia-se a Koll sempre como o "sábio das larvas".

O friso nunca foi terminado, mas mostra, claramente, um ser carregando um par de cajados que terminam em forma de cabeça de condor. É cercado por vários personagens alados. O cajado representa poder, em quase todas as antigas culturas do mundo. Muitos pesquisadores identificaram a figura central como sendo a representação do sol, devido aos "raios"
que saem de sua cabeça. Na verdade, não são raios solares. Parecem fazer parte de um penacho ou ornamento usado por alguma divindade importante. Seria Wiracocha? Totalizam 24 "raios", sendo que
17 terminam em esferas. O rosto da imagem central,
a única representada em tamanho grande, possui o
que parecem ser lágrimas escorrendo de seus olhos! Isso lhe valeu também o título de "deus chorão".
Entre tantas teorias e especulações, a mais próxima
da realidade foi apresentada por Posnansky. O sábio afirma que o friso representa um calendário agrícola, marcando os dias da semana, meses e, principal-mente, o período do equinócio. Os 24 "raios" que saem da cabeça do personagem principal indicam as

24 horas do dia. A imagem principal identificaria o equinócio, no mês de setembro. As demais figuras representam os meses, semanas e dias restantes. Ibarra concorda com a teoria de Posnansky e acrescenta que, além do friso da Porta do Sol, existiam outros calendários espalhados por Tiwanaku. No mínimo, dois solares que marcariam o começo do ano, em diferentes épocas, além de outros dez que estariam representados de forma dispersa em estátuas e frisos! Todos, porém, apenas parcialmente, devido à depredação por que passou
a ruína, em séculos anteriores.
Além destes monumentos principais, existem outros que merecem ser conhecidos, como Kantatallita e a Porta da Lua. No primeiro deles, encontra-se a "pedra maquete", uma enorme rocha que parece representar o complexo de Kalasasaya em miniatura, como se tivessem feito um estudo anterior a sua construção, na própria rocha. Por ficar próximo a cerca, distante dos edifícios centrais, passa desapercebido pela maioria dos visitantes. Além da pedra maquete, a poucos metros, encontra-se um maravilhoso arco entalhado em baixo relevo, com imagens que lembram muito as da Porta do Sol. O polimento desta peça é algo impressionante! O segundo monumento, a Porta da Lua, é também conhecido como "Porta do Cemitério" ou ainda "Porta do Panteão". Não se sabe quando surgiu o termo, ou associação dele com a lua. Ela é bem menor que a do Sol, mas traz um friso interessante, com o hieróglifo característico da cultura, o símbolo escalonado, encontrado também em várias outras partes do Peru. Ao lado da Porta da Lua, existe um pequeno morro que, provavelmente, foi também uma pirâmide, no passado.
Passei horas caminhando por entre enormes blocos de pedra, canais de irrigação, muros gigantescos, estátuas, portais, pirâmides... aquilo era o paraíso para qualquer arqueólogo
ou historiador!

Atravessei a cerca de Tiwanaku para ruas enlameadas, amassando barro, sem me preocupar. Minha cabeça estava “tão distante” que mal via o que se passava em volta.
Mas, aquilo não era tudo. Havia ainda Pumapunku!
— Deixe-me ver esse mapa.
Passei em frente ao museu e segui por uma estradinha de terra ao lado do trilho de trem.
Ela faz um “ziguezague” e, em pouco menos de 1 km, atingi o local. Portões abertos, sem guardas para fiscalizar... Entro, com meu ingresso na mão, e paro uns segundos em busca
de alguém que venha marcá-lo. Olho em volta e certifico-me que estou, realmente, sozinho.
À primeira vista, Pumapunku é decepcionante. Da entrada, tudo o que se vê é um morro baixo, coberto por rala vegetação e algumas pedras que despontam, amontoadas umas sobre as outras. Caminho meio preguiçoso em direção ao topo, recebendo o vento que bate forte no rosto. Agora, o tempo fica oscilando entre fachos de sol e nuvens que encobrem tudo. Paro, ainda alguns minutos, para apreciar o vale que se abre em frente, depois, continuo.
— Eu não acredito! Isso não existe!
Foi tudo o que consegui falar diante do que observava. Fiquei “petrificado” de espanto!
E pensar que quase todos os turistas nem se dão ao trabalho de vir até aqui. Pumapunku é extraordinário!
Imensos blocos de rocha, amontoados uns sobre os outros, “convidam a mente” a vagar pelo impossível. Blocos que pesavam cerca de 300 toneladas estavam jogados, como se alguma força titânica houvesse erguido tudo e depois soltado, novamente, ao solo. Deslizava as mãos sobre eles, como se estivesse acariciando um espelho! Eram, absolutamente, polidos!
Pumapunku significa "Porta do Puma" e foi uma enorme pirâmide escalonada de 210 por 154 metros. Possuía um templete em seu cume, dividido em quatro compartimentos. A exemplo da pirâmide de Akapana, usava também grampos de metal na junção das rochas. Igualmente, possuía uma espécie de "piscina" no topo. Era mais baixa que sua vizinha, com quatro plataformas. Contudo, Pumapunku apresenta uma arquitetura muito mais avançada do que Akapana. Certamente, foi construída posteriormente, no auge de criatividade tiwanaku.
Já visitei muitos sítios arqueológicos e, com certeza, Pumapunku foi um dos que mais me inquietaram. Impossível ficar indiferente a tal obra! O tamanho das pedras é só um pequeno detalhe do conjunto. O que mais impressiona são aqueles que passam desapercebidos aos olhos dos apressados. Enfileirada ao lado das gigantescas rochas, uma série de pedras engenhosamente trabalhadas. Qual teria sido a função delas? Se não visse com meus olhos, jamais acreditaria que tais entalhes eram possíveis de se realizar!
Ângulos ousados perfuravam e aplainavam a rocha criando concavidades profundas em seu interior. Blocos desenhados como se tudo fizesse parte de um imenso e intrincado “quebra cabeças”. “Caí de joelhos” para uma rocha que estava separada da fileira! Quem observasse, de longe, acharia que prestava algum culto àquela peça. Na parte de trás, minúsculas canaletas haviam sido esculpidas e perfuradas a intervalos regulares, por algum aparelho desconhecido, mas que hoje, poderia ser comparado a uma furadeira! O efeito foi o mesmo! Buracos minúsculos e perfeitamente arredondados! A canaleta também era de uma precisão sem igual, extremamente polida! Esses tiwanacotas, definitivamente, brincavam com as rochas. Possuíam habilidade e técnica apuradíssima. Fico pensando que tipo de civilização teria resultado, se existissem até os dias de hoje. Lembrando-me de todos aqueles autores sensacionalistas, penso que é, realmente, fácil acreditar que tudo tenha vindo do espaço.
É mais cômodo pensar assim... mas, na verdade, acredito, ainda está enterrada bem aqui, debaixo dos nossos pés.
Passei, pelo menos uma hora, caminhando por Pumapunku. Olhando-a em detalhes. Aconselho o visitante a contornar a pirâmide, descobrindo seus segredos. Um de seus lados já foi reconstruído, apresentando canais d'água impressionantes. Em sentido oposto aos enormes blocos, existe uma escadaria e, não muito longe, um grande bloco, que a exemplo de Kantatallita, parece ter servido como maquete. Detalhes que não podem ser deixados
para trás. Definitivamente, adoro esses tiwanacotas.
É quase que impossível não ficar assombrado frente ao trabalho realizado nesses grandes blocos de pedra. Para compreender melhor estas obras, precisamos lembrar da existência de outras, até mais antigas, que exigiram o deslocamento de enormes rochas. A técnica utilizada era igualmente engenhosa. Tiwanaku, como um todo, segue lado a lado com outros monumentos da antiguidade, como as pirâmides do Egito, o templo de Chavín de Huantar ou os monólitos de Stonehenger. Não devemos subestimar a capacidade técnica, coletiva e organizacional de culturas teocráticas.
Na região do Altiplano, a força e vontade humana fizeram o "impossível". Cieza nos fala sobre o caminho seguido pelos antigos tiwanakus para a construção de suas obras:
"Também se nota outra coisa grande, e é que em grande parte desta comarca não há nem se vê rochas, canteiras nem pedras de onde pudesse haver tirado as muitas que vemos, e para trazer-las não deviam de juntar pouca gente..."
É isso mesmo! Não era pouca gente, quanto maior a pedra, maior o número de homens trabalhando em seu transporte. As pedreiras já foram localizadas e estão entre 20 e 100 Km de distância do centro de Tiwanaku. A própria canteira que visitei na encosta do vulcão Kapía, com Julio Torres, parece ter servido como fonte. A amostra que trouxe de lá, correspondeu às pedras utilizadas nas ruínas.
Arqueólogos dedicaram décadas de estudos a Tiwanaku. Contudo, muita coisa ainda está para ser esclarecida. Max Uhle, Posnansky, Wendell C.Bennett, Maria Gisbert, Dick Ibarra Grasso, José de Mesa, Alfons Stubel, Carlos Ponce Sanginés, entre outros, estudaram e revelaram detalhes deste enorme “quebra cabeças”.
O CIAT (Centro de Investigações Arqueológicas de Tiwanaku) realizou um importante levantamento aéreo fotográfico, revelando dados preciosos sobre essa construção. Confirmou-se a hipótese de que ela estaria baseada em uma rigorosa orientação astronômica. Pumapunku e Kalasasaya estão a exatos 45 graus em relação ao norte geográfico! As fotos também mostraram uma antiga estrada que ligava a cidade ao lago e uma série de caminhos que o contornavam.
Um canal artificial foi localizado por Oswaldo Rivera, ligando Wiñaymarca à antiga capital.
Por ele, cerca de 20 km, as rochas eram transportadas sobre balsas de junco totora, até
um porto artificial. Dali eram arrastadas sobre argila arenosa, o que facilitaria o trabalho de tração humana.
A cada nova escavação, Tiwanaku nos revela dados interessantíssimos. Recentemente, os pesquisadores descobriram que ela ocupou um total de 420 hectares. Destes, apenas 4 por cento estão cercados e estudados, parcialmente! Existe muito ainda para ser descoberto sob a terra! Quantas estátuas, cerâmicas e peças podem estar soterradas? Quantas dúvidas não receberiam alguma luz, se houvesse condições para escavações? Pesquisas do próprio CIAT, dirigidas por Sanginés, revelaram a existência não de uma, mas, de cinco cidades sobrepostas! O local foi, com toda certeza, ocupado por grupos que remontam a uma longínqua época.
Mas, afinal, qual a verdadeira idade da cultura identificada como Tiwanaku? Parece, finalmente, que os sábios estão chegando a um consenso. Aceita-se hoje a existência de uma fase chamada "Aldeã", que ocupou os anos de 1500 a.C. até o ano de 45 de nossa era. Uma fase "Clássica", quando desenvolveu seu lado urbanístico durante os anos de 45 a 700. E, finalmente, uma fase "Expansionista", que abrangeu dos 700 a 1200. Em outras palavras, os tiwanakus sobreviveram por cerca de 2700 anos corridos!
Mas, por que motivo uma cultura tão brilhante, como esta, desapareceu? Muito se pergunta sobre isso. Existem várias teorias. A primeira não explica, exatamente, o motivo, mas, refere-se à falta de memória dos habitantes atuais da região. Na época da invasão inca, como era de costume, povos foram deslocados de seus territórios de origem. Deste modo, existe a possibilidade de outro grupo ter ocupado a região, não conhecendo, obviamente, o passado daquelas ruínas.
A segunda sugere que povos guerreiros invadiram o território, dizimando os tiwanakus, o que provaria a interrupção de seus edifícios. Uma terceira, defende a idéia de um grande cataclis-ma geológico que teria arruinado as culturas do Altiplano. Apontam para isso, inclusive,
o estado das pedras em Pumapunku e o volume de terra sobre templos e pirâmides.
Das três teorias, parece haver uma tendência afirmativa para a segunda delas, embora, até o momento, não tenha sido encontrado indícios satisfatórios da ocorrência de uma guerra com grandes proporções, ou mesmo, marcas de incêndio.
As demais hipóteses começam a ser descartadas, não apresentando maiores sustentações. Existe, contudo, uma quarta teoria que merece atenção e, igualmente, explica o fato da paralisação das obras sem apresentar, necessariamente, indícios de que Tiwanaku fora invadida. A cidade pode ter sido vítima de uma fragmentação de poder! Uma revolução interna.
Não devemos nos esquecer que estamos tratando do passado de homens, no qual a luta pelo poder foi sempre uma constante. O crescimento de Tiwanaku não trouxe, somente, prosperidade. Trouxe também divisões de classe e, conseqüentemente, insatisfação social. Uma fragmentação política pode ter ocorrido em algum momento, por volta de 1200, por abuso do poder religioso ou das diretrizes governamentais que geraram descontentamento em uma parcela da população.
Grupos podem ter abandonado a cidade ou, simplesmente, ocasionado seu enfraquecimento político e econômico com a paralisação e o abandono da agricultura. Contudo, as verdades e mentiras sobre Tiwanaku só serão realmente desvendadas, à medida que os arqueólogos forem revelando sua história através de escavações. Até lá, só nos cabe especular e aguardar.


“Dalton Delfini Maziero é historiador, maquetista, expedicionário e idealizador do site Arqueologiamericana. Dedica-se atualmente, à construção de maquetes arqueológicas e instalação de espaços culturais”